O CONSERTADOR DE PIANOS




Dilton Maynard

Já faz muito tempo. Nos dias brabos da Guerra ele ganhou notoriedade. Contam os mais velhos, ainda assustados, que um alemão andou aprontando em Aracaju.
Era um sujeito alto, comprido, um varapau mesmo. Branco, muito branco. Envergava um terno amarronzado quase todos os dias da semana, à exceção de quando resolvia dar um passeio. Quando isso ocorria, costumeiramente aos sábados, ficava em mangas de camisa, enterrava as mãos nos bolsos das calças de linho azul marinho e saía.
Descia a Barão de Maruim, dobrava e caminhava um pouquinho, se arrastando até as balaustradas da Ponte do Imperador. Ali, de frente pro rio, se punha a olhar o movimento das embarcações, comendo pipoca com manteiga farta. Pregava os olhos e se lambuzava com o horizonte, esperando o sol ir embora. De onde estava, ficava. Nem um passo a mais nesse ritual. E como incomodava a quem também resolvia ir por ali.
Ríspido, servia um olhar esnobe e econômico a todo aquele que, por acaso, se aproximasse disposto a uma prosa. Não se sabe ao certo o motivo de tamanho isolamento. As crianças diziam que ele virava lobisomem. Os alunos do Atheneu Sergipense (que aproveitavam o feriado para jogar conversa fora) suspeitavam do jeito esquisito daquele europeu, execrando a sua simpatia pelo nazifascismo. Para muitos, o quase certo mesmo era a heresia descabida daquele forasteiro.
Falam que ele xingava Cristo, desacatava Deus e o Diabo. Certa vez, dizem, quase quebra um Sagrado Coração, daqueles bonitos de encher os olhos, dos mais caros que se podia encontrar. Só não o fez porque havia muita gente na casa das irmãs vitalinas, onde estava a realizar um serviço. Mas, dias depois, numa outra ocasião, aproveitou a ida das madames à missa das nove e pronto: deu cabo da imagem. “Um empurrãozinho só e lá se foi o judeu”, comemorou. Pôs a culpa na empregada, acusando a moça de não ter lhe avisado acerca da tal imagem.
Depois, cabisbaixo desculpou-se com as solteironas. A aba do chapéu segurada pelas duas mãos, levemente empurrada contra o peito, os dedos passeando pelo tecido escuro. As irmãs se comoveram. Saiu ileso da aventura. Depois, riu sozinho da infeliz doméstica. Havia dois ou três dias a moça, vinda de Aquidabã, chegara para trabalhar na residência. O bode expiatório perfeito.
O alemão era de poucos amigos, mas necessário. Afinal, as poucas famílias burguesas das redondezas precisavam dos seus serviços. Afinar piano era com ele e, como ele, poucos o faziam com tão bons resultados. Também dava jeito nos rádios, trocando válvulas, soldando este ou aquele fio. Vez por outra, acertava os relógios de paredes, daqueles que rareiam hoje em dia: pêndulos bronzeados, numerais romanos, badalos com um som paciente, cadenciado, sem pressa de informar. Tamanha polivalência fez sucesso em Aracaju. Não faltava cliente abastado a precisar do tal gringo.
Mas amizade mesmo, só com D’Angieri. Também pudera, este era fascista convicto. Com foto do Duce e tudo. Até preso foi, quando encontraram no porão da sua casa comercial fuzis, dinamites e munição. Verdade seja dita, era uma ninharia aquilo tudo. Não dava para fazer revolução. E por essas e outras, ninguém punha muita fé no D’Angieri. Mas o alemão consertador de pianos, ah! Esse, sim, precisava de um chega pra lá.
O homem não sossegava um só instante. Muitas vezes, no intervalo de um serviço, quando as empregadas vinham com um suco de mangaba ou jenipapo e biscoitos de goma, o gringo aconselhava às senhoras, suas clientes, a aprenderem urgentemente a falar o alemão. “O terceiro Reich será implacável”, afirmava. Tinha um prazer, um gostinho bom com os sustos que provocava. E danava a assustar as fraüleins da barbosópolis. Depois, bebia até a última gota do suco oferecido. Limpava os lábios com as costas das mãos e voltava ao trabalho.
Certa vez, uma madame muita distinta, dessas que afinava o piano na esperança de espantar a preguiça dos meninos da casa, que não queriam Wagner e cantarolavam os sambas de Noel, de Sinhô, soltou os cachorros no germânico. “Os alemães perderão a guerra, meu senhor”. Ofereceu a O Cruzeiro na qual ela havia lido algo sobre a luta na Europa. De achega ao argumento, a dona do piano, para provar definitivamente ao estrangeiro que tinha razão no assunto, ameaçava até encomendar um exemplar da Seleções com um primo seu em Salvador. A tal revista, berrava a irritada senhora, chutava os alemães para o seu devido lugar.
Dizem que o consertador não ficou por baixo. Inflou as veias da testa, subiu a sobrancelha esquerda mostrando melhor a íris azul, avermelhou o rosto temperado por algumas sardas e erupções provocadas pelo calor e, de dedo alto, a meio passo, triscando os olhos castanhos da cliente, o súdito do Reich desafiou: “a senhora sabe o que é um alemão? Sabe do que nós somos capazes?”. Até hoje, não se sabe a resposta da madame.
Porém, pelo que falam, o fogo do gringo se apagou depois de 42. No mês de agosto daquele ano, quando os alemães deram cabo de 5 ou 6 navios mercantes brasileiros, entre Sergipe e Bahia, das praias de Aracaju pareciam brotar corpos e destroços. Os pescadores mais velhos quase enfartaram de susto, ao ver tanto morto, tanta destruição, tamanha desordem.
Daí o povo saiu a reclamar. Bandeira do Brasil à mão, cartazes pintados aos trancos, repletos de slogans e erros de grafia, exigindo uma forra. A turba crescia a cada esquina. “Que fazer?” Alguém parecia perguntar, entre um xingamento e outro. A resposta era prática: “Vamos caçar Quinta Coluna”. Cismaram que o tal alemão dos pianos era da espécie.
Falam que foi um alvoroço só. A gente toda querendo empacotar o gringo, ele escapando, saindo pela janela do quarto no Hotel Marozzi, quebrando as telhas do estabelecimento vizinho, comprometendo bica nova e tudo, tomando o caminho da rua Vitória Torta; e seguindo afoito, a pé, à Estação da Leste, no Aribé. Pensou em só trocar de hotel, ficar no Rubina talvez. Contudo, o senso de sobrevivência falou mais alto. Era melhor escapar, ficar uns dias lá com o Weissmüler que, chefe na fábrica em Maruim, teria como lhe arranjar abrigo.
Todavia, não embarcou. Pelo telefone da Estação a dupla de Cosme e Damião incumbida de fazer a ronda local foi chamada ao escritório da administração e avisada do acontecido. Ouvindo a ordem, os guardinhas apressaram o passo de volta à portaria da ferroviária – onde ficavam paquerando as moçoilas, ajudando velhinhas com as bagagens e filando doces do moleque que corria o local com um tabuleiro amarrado ao pescoço. “Quem quer doce? Quem quer um puxa-puxa?”. O germânico nem chegou a comprar bilhete, ameaçado que foi de tomar ali mesmo um banho com os rabos-de-galo dos polícias. Pegaram o alemão pelo braço e tocaram para a Delegacia, no centro da capital.
Tudo indica que o tal consertador de pianos foi autuado. Parece até que o delegado plantonista quis lavrar flagrante, alegando que o alemão dera apoio logístico ao submarino que atacou as embarcações brasileiras. O estrangeiro berrava, nervosíssimo, cuspindo sem querer na cara dos policiais, repetindo e repetindo, misturando idiomas, que não tinha nada com o acontecido. Retrucava dizendo, aliás, que aquilo fora coisa de Yankee. Até ser desfeita a confusão, parece que o alemão consertador de pianos ficou preso um bom tempo. No xilindró, sofreu e berrou como ninguém. Em liberdade, não quis mais Sergipe. Partiu para o Sul, não sem antes amaldiçoar a gente toda por aqui. Os mais velhos ainda falam dele com um espanto singular.

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