O Fazendeiro e o Caixão




Dilton Maynard

“Morrer e ser enterrado em rede não é destino pra um cristão que se preze”, tocava a comentar com as pessoas na mercearia – única, por sinal – do povoado próximo à sua fazenda. Mandava pra dentro dois ou três goles de aguardente, mirava o chão e cuspia com força. Defendia então a necessidade da região se desenvolver, parar com esta dependência frente à capital. Era urgente progredir.Pelo que dizem, o homem era um precavido. De tanto temer ser enterrado em rede, comprou antecipadamente um caixão.Era uma peça única aquela urna. A madeira reluzente, as alças prateadas, enfeitadas com leões boquiabertos, coisa boa mesmo. Havia entalhes com rosas, ramos e um crucifixo, pregado pouco abaixo da escotilha pela qual o rosto do defunto poderia ser visto. Uma obra de arte, uma verdadeira obra de arte.O ataúde foi guardado na casa-grande, no banheiro. Ficava num canto escuro, sobre a caixa d`água, protegido por duas cobertas velhas. Às vezes, o homem retirava os panos e exibia, com um orgulho de mostrar os dentes, a peça funérea aos amigos mais íntimos que, curiosos e estupefatos, teciam o sinal da cruz ao ver objeto tão sinistro enfurnado, como roupa suja, num canto da casa.Porém o homem não ligava. Ao contrário, até se divertia. O importante era não ser enterrado em rede, tal qual um sujeitinho qualquer, como um entulho humano, um ordinário, feito bicho. Por isso comprara o caixão.A peça viera de Aracaju. A sua encomenda foi feita numa das viagens que o latifundiário fizera à capital para depositar dinheiro no único banco do estado e comprar alguns utensílios para a fazenda. Em meio a tantas atividades, sobrou tempo para encomendar o caixão. Peça e frete findaram num preço salgado. Porém, o homem pagou sem receio. Não titubeou.Com a chegada do caixão, passou a ocorrer algo muito curioso. Ao morrer alguém, filho de família importante, político ou usineiro, logo acorriam à casa do tal fazendeiro do caixão. O motivo: os parentes do defunto iam pedir-lhe emprestado a peça funesta. Depois do enterro do ente querido, mandavam então encomendar uma outra, novinha em folha, nas mesmas medidas, em Aracaju.Dificilmente o homem negava este favor. Para ele, pior era ver um infeliz enterrado em rede, como se, do dia para a noite, passasse de gente a cão danado. Para não ter peso na consciência, normalmente emprestava. Ia além. Fazia questão de prestigiar o velório, o enterro, ajudava a segurar o caixão. Quando a urna pesava muito, parava tudo e pedia silêncio. Caixão pesado demais é sinal de que o finado não quis morrer e, inconformado, dificultava a locomoção do féretro.Especialista nas artes fúnebres, o nosso amigo mandava logo buscar o “chicote” que sempre utilizava quando viajava a cavalo. Gritava para o primeiro moleque que entrasse no seu raio de ação. E o menino disparava. Driblava a gente chorona, chegando até o cavalo parado diante da casa do defunto. O moleque apanhava o açoite e, rápido como se rouba, voltava ao recinto do velório ou ao ponto no qual o enterro empacara devido ao peso excessivo do morto.Armado com chicote, o velho fazendeiro rezava três Ave-Marias e, em seguida, passava a açoitar o caixão, murmurando palavras irreconhecíveis, indo de um lado ao outro da urna como se estivesse a falar com o objeto. Após certo tempo, avisava que o cortejo podia seguir. Assim, o enterro prosseguia - para o assombro de todos - com o caixão bem mais leve agora.Não se sabe bem como, mas o certo é que o homem acabou acostumando-se ao convívio das fatalidades. Verdade seja dita, elas não eram muitas naquele canto tão miúdo do estado. Demorava a nascer um defunto. Porém, quando isto ocorria, nosso amigo era logo informado e questionado sobre o que deveria ser feito. Em tais circunstâncias, a depender da valia do defunto, o número de conselhos era imenso. Foi assim quando morreu o major Epaminondas Botelho. Nosso especialista cuidou de tudo.De início, mandou cortar a parte traseira do paletó e da blusa de manga longa do falecido. Assim facilitava a morosa cerimônia de vestir o morto para o compromisso do velório. E não deixava pôr qualquer roupa. Tinha que ser a que o defunto mais gostava, a de missa, por exemplo. Se houvesse uma roupa nunca usada, era essa a escolhida. “Melhor assim”, dizia. Pior era sepultar o corpo sem que ele utilizasse a vestimenta. Poderia ocorrer o mesmo que aconteceu com a nora da falecida D. Luzia Teixeira, que viu a mãe do esposo diante do guarda–roupa, apontando para o móvel, envolta em uma névoa anil. A culpa foi da própria Anita, que doou, ao bazar da paróquia, o vestido novo de D. Luzia, o último que ela comprara numa viagem a Salvador, pouco antes de morrer. Depois daquela noite, a moça viu a mesma coisa mais duas vezes. A defunta parada, apontando para o guarda-roupa. Só houve sossego quando Anita Teixeira foi até a Igreja e pediu o vestido de volta.Após vestir o major Botelho, nosso entendido nas artes fúnebres ordenou à empregada que trouxesse meia xícara de café em pó e um pouco de vinagre.Num desmanchar perene a empregada embrenhou-se na cozinha e retornou, trazendo os ingredientes exigidos, que rapidamente foram espalhados pelo forro do caixão. Com isso, a possibilidade do mau cheiro tornava-se remota, quase afastada.Por essas e outras, o tal fazendeiro chegou diversas vezes a ser chamado junto com o pároco local para os momentos de extrema-unção. Enquanto o padre murmurava perguntas ao ouvido do moribundo, o fazendeiro se punha a olhar (procurando o melhor ponto de referência) o quase morto, estudando-o meticulosamente: mãos, pés, volume do corpo, cabelos, tamanho do caixão. Neste momento, aflorava o velho problema. Faltava caixão. E o enterro era feito em rede.Às famílias mais abastadas, por respeito, agradecimento ao apoio em época de eleições e sobretudo por não suportar a idéia de acompanhar um enterro em rede, emprestava o seu caixão. E, claro, havia problemas.Alguns corpos eram menores, não gerando grandes empecilhos. Todavia, quando o defunto era maior do que as dimensões do caixão, todo trabalho ficava comprometido.Quando possível, alguns corpos eram levados com os pés para fora, através de um buraco feito por serrote na madeira do caixão e coberto com pano negro. Quando dava, pedia para que ninguém acompanhasse a colocação do corpo na urna funerária. Graças a este artifício, podia quebrar o braço do defunto, ganhando espaço nas laterais. Às vezes dava certo.E deste jeito o homem enterrou muita gente. Emprestou muito o seu caixão. Ganhou muito voto assim.Num certo sábado, após o almoço, morreu o coronel Antero Gouveia, da Fazenda S. José. Morte feia aquela. Estuporou. Havia comido um pirão de vermelha reforçado, quente feito brasa, do tipo que deixa a camisa ensopada, e quase imediatamente, saiu debaixo de um chuvisco leve. Havia esquecido de colocar a lona sobre a carroceria da caminhonete. Se a chuva engrossasse, acabava um lamaçal no fundo do carro. Porém, o homem nem chegou a dar dez passos. Caiu ali mesmo, num treme-treme danado.Passado o choque inicial, a família Gouveia resolveu providenciar o caixão a autoridade fúnebre das redondezas. Após lamentar a perda de um aliado político tão importante, o único dono de caixão das redondezas prontamente emprestou o seu valoroso e macabro mobiliário.Contudo, ocorreu algo inesperado. De madrugada, nosso amigo começou a passar mal. Suava frio, resolveu levantar-se e ir ao banheiro. No meio do caminho pôs a mão no peito, sentiu um peso enorme, não conseguiu gritar, o chão enegreceu abaixo dos pés, uma dor fina como corte de navalha beliscou-lhe o peito. O fazendeiro revirou os olhos e desabou morto. A família entrou em pânico. Foi um berreiro imenso. Um carpir sem fim, quase um dilúvio de tanto choro. Os filhos num pranto só, a mulher com as mãos para o céu e ele, coitado, como o caixão havia sido emprestado e não houve tempo para adquirir outro, enterrado em rede.No caminho até o cemitério, em meio ao silêncio, jagunços e amigos se revezaram no sustento da rede. O corpo parecia mais pesado do que o falecido realmente era. Ainda assim não brecaram um só minuto. Minto, empacaram quando deram de cara com o féretro do coronel Antero Gouveia, que vinha alinhado no caixão de entalhes e madeira reluzentes. Depois, o cortejo seguiu mudo carregando a pesadíssima rede até o cemitério. Publicado no Jornal da Cidade.AJU- SE 9.9.2003 Opinião

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