A esperança de chuteiras
Dilton Maynard
(GET/UFS/CNPq)
A cena não poderia ser mais humilhante. Parado na linha do gol, com o pé sobre a bola, após ter deixado para trás toda a defesa adversária, até mesmo o confuso goleiro, que engatinhava desesperado de volta às traves, o moço observava. Quando todos esperavam o gol, o lance inesperado: com um sorriso indisfarçável, o atleta mirou o centro do campo e recolocou a bola em jogo. Castigava seu adversário não fazendo o sexto gol. Trata-se, sem dúvida, de uma atitude ousada, debochada. Este tipo de jogada normalmente acarreta para um jogador críticas e, muitas vezes, pontapés dos adversários. Mas, o que dizer de alguém que, numa cidade ocupada pelos alemães durante a II Guerra, adotou tal postura diante de um time de nazistas, num jogo apitado por um oficial da SS (Schutzstaffel, tropa de proteção) considerada a “guarda pretoriana” de Hitler? Esta é uma das narrativas presentes no livro Futebol & Guerra, de Andy Dougan (Jorge Zahar, 2004).
Originalmente chamado Dynamo (Triumph and Tragedy in Nazi-occupied Kiev), o livro conta a saga dos ex-integrantes do Dínamo de Kiev que, numa cidade ocupada pelos alemães, encontra no futebol um mecanismo de resistência à ocupação da cidade. Dividida em 15 capítulos, a obra narra a expansão do futebol como esporte de massa no leste europeu e apresenta algumas das suas principais estrelas pouco antes da chegada das tropas alemãs. Assim, o leitor entra em contato com jogadores como Konstantin Shchegotsky, intelectual e astro do futebol soviético, Nikolai Makhinya, jogador exemplar, descrito como “o sonho de qualquer treinador” por sua obediência tática e disciplina fora dos gramados; os goleiros Anton Idzkovsky e Nikolai Trusevich - considerado o melhor da URSS, além de Makar Goncharenko, Alexei Klimenko, Pavel Komarov entre outros.
O livro apresenta a construção do time F.C. Start, formado por trabalhadores da Padaria número 3 de Kiev. Na prática, a tal “padaria” tratava-se basicamente de uma fábrica, responsável pela alimentação das tropas alemãs na cidade, produzindo diariamente cerca de 50 toneladas de pães diferenciados. Além de ex-jogadores do Dínamo de Kiev, criado em 1927, o Start possuía alguns jogadores vindos do Lokomotiv, ou Zheldor (equipe originada por trabalhadores ferroviários do sudoeste ucraniano).
A Ucrânia, conhecida como “celeiro da Europa”, possuía importância estratégica para os planos de Adolf Hitler. Andy Dougan descreve o clima de perseguição e delação que o regime soviético estabeleceu durante anos aos ucranianos. Estas práticas, segundo o autor, minaram as possibilidades de resistência daquele povo. Entre lutar por uma vida sob Stálin e outra sob Hitler, parecia não haver grandes diferenças. Havia a certeza de que nada poderia ser pior. O ousado time do Start ajudou a demolir este conformismo.
O time do F.C. Start enfrentou e por duas vezes ganhou do Flakelf. Na primeira partida, o placar foi de 5x1, enquanto o segundo jogo foi encerrado antes mesmo do tempo regulamentar, quando os ucranianos venciam por 5x3 (o jogo mencionado na abertura deste texto). A designação de ambos os times merece atenção: “start”, tanto em russo ucraniano quanto em inglês significa “começo”; “flakelf”, representante da Luftwaffe, a poderosa força aérea alemã, significava os onze (elf) das baterias antiaéreas (flak). Os jogos seriam, portanto, confrontos entre os cavalheiros arianos do ar, oriundos dos quadros da SS, contra os untermenschen (subumanos) de uma padaria ucraniana.
Pouco após a vitória sobre o Flakelf, os integrantes do F.C.Start foram convidados a enfrentar outro time, o Rukh, formado por nacionalistas ucranianos que apoiavam a invasão alemã. Venceram por 8x 0. A euforia da população local e o constrangimento da SS e de grupos políticos ucranianos fizeram com que os jogadores do Start fossem enviados para o campo de extermínio de Siretz, a noroeste de Kiev, dirigido pelo Obersturmbahnfürer Paul Radomsky. Cruel, sádico, Radomsky era um assassino metódico: “levava a cabo fuzilamentos todas as manhãs às seis horas e em seguida retornava para suas dependências, para tomar o seu desjejum”, conta o autor (p.166). Ali, entregues a um militar doentio, padeceriam e, em sua maioria, morreriam parte dos jogadores do F.C. Start.
Dougan sugere de forma enfática a força simbólica do futebol como um elemento na retomada da auto-estima dos ucranianos. A leitura do seu livro ajuda a pensar a influência do tal “esporte bretão” no mundo contemporâneo. Afinal de contas, a FIFA, Federação Internacional de Futebol, possui mais integrantes que a própria ONU. No Brasil, os números indicam a dimensão que este esporte alcançou no país: conforme o diário espanhol AS, o país exportou mais de 800 jogadores em 2004. Algo equivalente a 3% do PIB. Como, então, desprezar o peso desta prática na história? Obras como Futebol & Guerra nos lembram que, na aparente inocência dos dribles e arrancadas de atacantes e zagueiros, repousa muito mais do que julgamos.
(GET/UFS/CNPq)
A cena não poderia ser mais humilhante. Parado na linha do gol, com o pé sobre a bola, após ter deixado para trás toda a defesa adversária, até mesmo o confuso goleiro, que engatinhava desesperado de volta às traves, o moço observava. Quando todos esperavam o gol, o lance inesperado: com um sorriso indisfarçável, o atleta mirou o centro do campo e recolocou a bola em jogo. Castigava seu adversário não fazendo o sexto gol. Trata-se, sem dúvida, de uma atitude ousada, debochada. Este tipo de jogada normalmente acarreta para um jogador críticas e, muitas vezes, pontapés dos adversários. Mas, o que dizer de alguém que, numa cidade ocupada pelos alemães durante a II Guerra, adotou tal postura diante de um time de nazistas, num jogo apitado por um oficial da SS (Schutzstaffel, tropa de proteção) considerada a “guarda pretoriana” de Hitler? Esta é uma das narrativas presentes no livro Futebol & Guerra, de Andy Dougan (Jorge Zahar, 2004).
Originalmente chamado Dynamo (Triumph and Tragedy in Nazi-occupied Kiev), o livro conta a saga dos ex-integrantes do Dínamo de Kiev que, numa cidade ocupada pelos alemães, encontra no futebol um mecanismo de resistência à ocupação da cidade. Dividida em 15 capítulos, a obra narra a expansão do futebol como esporte de massa no leste europeu e apresenta algumas das suas principais estrelas pouco antes da chegada das tropas alemãs. Assim, o leitor entra em contato com jogadores como Konstantin Shchegotsky, intelectual e astro do futebol soviético, Nikolai Makhinya, jogador exemplar, descrito como “o sonho de qualquer treinador” por sua obediência tática e disciplina fora dos gramados; os goleiros Anton Idzkovsky e Nikolai Trusevich - considerado o melhor da URSS, além de Makar Goncharenko, Alexei Klimenko, Pavel Komarov entre outros.
O livro apresenta a construção do time F.C. Start, formado por trabalhadores da Padaria número 3 de Kiev. Na prática, a tal “padaria” tratava-se basicamente de uma fábrica, responsável pela alimentação das tropas alemãs na cidade, produzindo diariamente cerca de 50 toneladas de pães diferenciados. Além de ex-jogadores do Dínamo de Kiev, criado em 1927, o Start possuía alguns jogadores vindos do Lokomotiv, ou Zheldor (equipe originada por trabalhadores ferroviários do sudoeste ucraniano).
A Ucrânia, conhecida como “celeiro da Europa”, possuía importância estratégica para os planos de Adolf Hitler. Andy Dougan descreve o clima de perseguição e delação que o regime soviético estabeleceu durante anos aos ucranianos. Estas práticas, segundo o autor, minaram as possibilidades de resistência daquele povo. Entre lutar por uma vida sob Stálin e outra sob Hitler, parecia não haver grandes diferenças. Havia a certeza de que nada poderia ser pior. O ousado time do Start ajudou a demolir este conformismo.
O time do F.C. Start enfrentou e por duas vezes ganhou do Flakelf. Na primeira partida, o placar foi de 5x1, enquanto o segundo jogo foi encerrado antes mesmo do tempo regulamentar, quando os ucranianos venciam por 5x3 (o jogo mencionado na abertura deste texto). A designação de ambos os times merece atenção: “start”, tanto em russo ucraniano quanto em inglês significa “começo”; “flakelf”, representante da Luftwaffe, a poderosa força aérea alemã, significava os onze (elf) das baterias antiaéreas (flak). Os jogos seriam, portanto, confrontos entre os cavalheiros arianos do ar, oriundos dos quadros da SS, contra os untermenschen (subumanos) de uma padaria ucraniana.
Pouco após a vitória sobre o Flakelf, os integrantes do F.C.Start foram convidados a enfrentar outro time, o Rukh, formado por nacionalistas ucranianos que apoiavam a invasão alemã. Venceram por 8x 0. A euforia da população local e o constrangimento da SS e de grupos políticos ucranianos fizeram com que os jogadores do Start fossem enviados para o campo de extermínio de Siretz, a noroeste de Kiev, dirigido pelo Obersturmbahnfürer Paul Radomsky. Cruel, sádico, Radomsky era um assassino metódico: “levava a cabo fuzilamentos todas as manhãs às seis horas e em seguida retornava para suas dependências, para tomar o seu desjejum”, conta o autor (p.166). Ali, entregues a um militar doentio, padeceriam e, em sua maioria, morreriam parte dos jogadores do F.C. Start.
Dougan sugere de forma enfática a força simbólica do futebol como um elemento na retomada da auto-estima dos ucranianos. A leitura do seu livro ajuda a pensar a influência do tal “esporte bretão” no mundo contemporâneo. Afinal de contas, a FIFA, Federação Internacional de Futebol, possui mais integrantes que a própria ONU. No Brasil, os números indicam a dimensão que este esporte alcançou no país: conforme o diário espanhol AS, o país exportou mais de 800 jogadores em 2004. Algo equivalente a 3% do PIB. Como, então, desprezar o peso desta prática na história? Obras como Futebol & Guerra nos lembram que, na aparente inocência dos dribles e arrancadas de atacantes e zagueiros, repousa muito mais do que julgamos.
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