Só no chat, Só na Net: música e ciberespaço

Dilton Maynard

A canção é taxativa: “Quem mexe com internet/Fica bom em quase tudo/Quem tem computador/nem precisa de estudo”. A sarcástica afirmação é feita pelo pessoal do Pato Fu. Outra canção, outro diagnóstico: “Certo é que o sertão quer virar mar/Certo é que o sertão quer navegar/No micro do menino internetinho” anuncia Gilberto Gil.Ambas as músicas evidenciam o quanto a Internet influencia as nossas vidas.
Como se vê acima, as tensões existentes entre o ciberespaço, este mundo de fluidez ininterrupta e a vida cotidiana são mais frequentes do que poderíamos imaginar. Tão frequentes, que (pre)ocupam até mesmo aos artistas. Por exemplo: uma audição atenta e logo perceberemos como as mudanças trazidas pela chegada da Internet estão presentes na música.


A banda sergipana Naurêa já realizou a sua novena para São Bill Gates, Zeca Baleiro cantou que “se o homem já foi à Lua/ vai pegar o sol com a mão/ Basta comprar um PC/ E aprender o abc da informatização”. Gil, um dos mais empolgados com a temática, procura apagar o fogo dos críticos e lembra as similitudes entre as gerações que, a cada tempo, descobrem novas formas de se comunicar: “Diabo de menino internetinho/Sozinho vai descobrindo o caminho/O rádio fez assim com seu avô” .
Na verdade, poderíamos dizer que esta ligação entre as experiências tecnológicas e a música não é algo novo. Tomemos como exemplo apenas o casos brasileiro. Há canções como “Perdidos no Espaço”, da extinta Legião Urbana: “E era como se jogassem Space Invaders/Perdendo mais dinheiro de muitas maneiras/Vivendo num planeta perdido como nós”. A música indicia a angústia juvenil num tempo em que “a rotina crescia como planta/E engolia metade do caminho” e a mudança demorava a ocorrer “por ser tão veloz”. Contradições como esta, típicas da revolta expressa no rock contemporâneo, marcaram os anos 1980, tempos de invasão dos videogames, dos fliperamas. Tempos de Space Invaders.
Percebe-se, porém, um avanço cada vez maior em relação aos efeitos, seduções e desencantos provocados pelo avanço tecnológico. Talvez a melhor tradução destas influências tenha aparecido na obra “Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros” (1987), um vinil repleto de canções sobre personagens marginais e impregnados pelas novidades tecnológicas daqueles tempos – o telex, o computador, o videocassete, os mísseis, ou calcinhas, Exocet. O disco era preenchido por diversos efeitos, as músicas soavam como narrativas jornalísticas, crônicas escritas no calor da hora.
Por sua vez, gravações mais recentes incorporam relatos de experiências inéditas. O que dizer, por exemplo, da curiosa situação vivenciada pela personagem de um samba rock cantado por Seu Jorge: “Ela disse que me ama/Disse que me adora/Disse que me quer/Diz que quer morar comigo/Que sai da igreja/E aceita o candomblé/(...) Ela vem com essa/E eu nem a conheço pessoalmente/Só no chat/Só na net/Só na mente”.
Sugestivamente batizada de “Só no chat”, a música aborda um dos problemas trazidos pelos Web: as relações afetivas por meios virtuais. São dificuldades inesperadas, situações complexas. A letra da música lembra velhos sambas, explora uma temática corriqueira. Trata-se da mulher em melhor posição social, alguém que “esquece da fama e de trabalhar”, que se propõe até a bancar o malandro. Espera dele apenas a satisfação da cama, promete que “prepara na bandeja/Um filé que seja”, tudo que leve ao prazer do seu amado. Mas o que impressiona é a forma como esta relação se estabelece. O narrador jura: “eu nem a conheço pessoalmente/Só no chat/Só na net/Só na mente”. Embora explique ser pessoa já comprometida, o personagem sofre as consequências comuns aos desamores cibernéticos: “Disparou na rede agora/Que já me namora/Parece lelé/Já marcou o casamento/Sem meu consentimento/Quer ser minha mulher”.
Mas o que motivaria algo assim? O que poderia explicar este apego desenfreado, este sentimento não compartilhado, esta leitura imprecisa e descabida da realidade mencionada na canção acima citada? Antes desta música de Seu Jorge, ainda nos anos 1990, poderemos encontrar indícios que teriam alimentado este tipo de situação. Vejamos esta canção de Lulu Santos:“Há uma certa urgência/(...)/Instalei uma antena/E lancei um sinal/Há nada no radar/Procuro no dial.../Aviso aos navegantes/Tem mais alguém aí?/Só ouço o som da minha/Própria voz a repetir.../S.O.S. Solidão!
A angústia e o medo da solidão evidenciado nos versos, talvez expliquem, ao menos em parte, as razões para mergulhos tão profundos no oceano digital. E ao nadar no oceano da web, muitos se afogam em relações afetivas desproporcionais. Amam bits e megabytes. A Internet tem alterado as relações entre as pessoas. Estamos conectados a muitos e, ainda assim, assustadoramente sós.



A Internet tem transformado normas de conduta e promovido novos padrões de relacionamentos afetivos. Graças a ela, tudo parece estar ao alcance de um clique: “acessando a internet/Você chega ao coração/Da humanidade inteira/Sem tirar os pés do chão/reza o pai-nosso em hebraico/filosofa em alemão/Descobre porque que o Michael/Deu chilique na televisão”. Isto é, no mar de informações, entre a filosofia e a fofoca, a escolha ainda é nossa. Enfim, nas canções contemporâneas, aflora um tipo novo de sensibilidade mediada pela tela do computador ou do celular. Percebem-se também os medos, os problemas trazidos por este novo mundo. Mundo admirável a alguns, terrível para outros. Principalmente aqueles que limitam sua existência só aos chats, só à Net...

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