O último na fila do mundo




Sentou ofegante embaixo da árvore de copa parca. Olhou as pessoas a passar.
Os minutos escorregavam com o suor da fronte. Estava ali só Deus sabe há quanto tempo. O sol, com elegância única, definhava. Mesmo assim o moço continuou sentado. A cabeça, em rodopios de fatos, reforçava a idéia de que havia algo errado. Pensou no patrão, o gordo e intragável Nuno Freitas Costa, dono da loja de ferramentas: “- Português filho duma égua!”. Dito isto, emudeceu junto com aquele resto de tarde moribunda. Então, a noite chegou sem grandes cerimônias. Ele também não se deu conta. Resmungou: “– Ser empregado... É a pior coisa do mundo, meu Deus!”
Tornou a olhar em volta. A praça, agora iluminada por lâmpadas um tanto tímidas e faróis esporádicos, possuía bancos de madeira com renovada por pinturas recentes, flores bem-cuidadas, e dois ou três mendigos que se apertavam junto ao coreto. Namorados imbuídos da gana do primeiro encontro tomavam sorvete, enquanto meia dúzia de beatas, satisfeitas, rumavam de volta para casa, após a missa na Catedral. Sentado no meio fio, um pequeno engraxate verificava animado os ganhos do dia. Cerca de dez samangos, aproveitando a folga, conversavam no lado oeste da pracinha, fazendo hora até o momento de invadir os prostíbulos mais ao centro da cidade. O moço levantou-se e foi embora. A alegria ali reinante lhe parecia injusta. A cada passo, a fisionomia sorridente do patrão reacendia o autoflagelo: “- Capacho!”
Tudo começara horas antes. Pela manhã, enquanto limpava a frente da loja, Alice apareceu e soltou-se a conversar. Ele então sorriu como uma enxada velha que voltava a ser usada. A moça, de ar travesso e vinte anos incompletos, fez o convite para o passeio: “- Minha prima vai com o Pedrinho! Ele tem carro. Nós podemos ir com eles... Quer?”
O pobre diabo quase cuspiu ao dar a resposta: “- Ô! Claro que eu quero, Alice! Diz o horário e o local pra gente se encontrar, que eu tô lá!”
Alice, filha de um funcionário aposentado da companhia estadual de saneamento e de uma professora da rede municipal, explicou com um sorriso perverso e atraente: “- Cinco, lá na pracinha da Catedral... Falo com eles e, até umas cinco e meia, a gente te espera. Vamos dar uma volta na praia, tem lua cheia hoje...”
Ele sufocou a ânsia e voltou a confirmar o horário: cinco e trinta. Estava ótimo. Afinal, por volta das cinco largava o serviço (era o primeiro a chegar, sete da manhã, para abrir a loja e deixar tudo em ordem).
O tal acordo foi firmado pouco antes das dez. Depois disto o tempo emperrou. Eufórico, ele fez de tudo às pressas: limpou o balcão, atendeu a duas velhinhas desejosas por deitar verniz em cadeiras cimo, despachou tintas e solventes para a Prefeitura, anotou recados para o patrão; providenciou as encomendas dos clientes em Capela. E o expediente teimava em parecer interminável. Contudo, após uma espera imensa, o horário enfim se aproximava. E eram cinco para as cinco da tarde quando o português, bem vestido e perfumado, atravessou a porta lateral do estabelecimento. Veio ordenando: “-Escuta rapaz! O Aparício está com uma gripe daquelas! Não vai poder ficar para fechar a loja. Como eu tenho que apanhar minhas pestinhas na escola, tu fechas a loja. Tem problema?”
Se tivesse, ia adiantar? Não era um pedido, era uma ordem. A pulsação do moço fez um zigue-zague abrupto. Aparício, funcionário antigo, puxa – saco com carteira registrada, era protegido do português. Ele aliciava algumas amiguinhas do curso noturno de datilografia para o chefe. Era comum ver o moço, de corpo magro e voz delicada, conversando no balcão com uma ou outra delas. Elogiava o patrão e passava as mãos pela cabeleira calva, arrumada com gel meticulosamente espalhado: “- O melhor homem do mundo!”, bordava o rapazinho.
Vez ou outra, quando havia alguma festa maior, como o aniversário da cidade ou um baile de formatura na cidade, Aparício cooptava uma amiguinha e a levava até o lusitano. Apesar da boa lábia que possuía, ele não era visto namorando garotas, mesmo sendo costumeiramente visto com elas. Acontece que aquele cidadão gostava de rapazes. Tinha um afeto todo especial por Bonifácio, um faxineiro que trabalhava na Farmácia Santa Helena, propriedade de Giba, farmacêutico e boêmio famoso pelas serenatas que promovia. O rapaz ganhava presentes e mais presentes de Aparício. E tais mimos só eram possíveis graças aos favores que o moçoilo prestava ao patrão. Todo mundo na loja sabia disto. Aparício era o gigolô do Freitas. Graças a isto, podia até adoecer. E inventou de fazer isto justo naquela tarde.
A loja só descia as portas às seis horas. E agora? O moço viu o patrão sair calmamente, satisfeito com o poder que os céus lhe conferiram, espalhando o cheiro agridoce de uma loção pós-barba, balançando orgulhoso um rosário. Depois disto, seus olhos não desgrudaram do relógio. Além dele, mais ninguém na loja. Alice esperaria até cinco e meia. A praça não ficava a mais de três quadras. Cinco e dez. Cinco e vinte. Bateu com os punhos no Balcão: “- Fecho esta birosca e em dois minutos chego lá!”.
Baixou as portas com o ímpeto de um tufão. O Freitas nunca voltava após ir buscar as filhas. Dificilmente chegava algum cliente naquele horário. Milagre mais difícil, impossível. Eram cinco e vinte e sete. Voou em direção à praça. Apressado, não percebeu o cadarço desamarrado. Tropeçou e o chão surgiu rápido. Arranhou a mão direita. O corte provocou uma dor fina, leve, mas que insinuava crescer junto com o sangramento, já visível em linha esguia, a descer na direção de um canteiro próximo. Mas, com o vigor que só tempera os visionários, ergueu-se, limpou-se como pôde. Voltou a correr.
Eram cinco e trinta e cinco quando, ao chegar ao local marcado, viu Alice em conversa animada com o português. Parou temeroso. A moça, juntamente com a prima – uma mulata esbelta de seios miúdos, vigiados de perto pelo namorado dono de um bigode disciplinado e de sorriso seco – entrou no automóvel esverdeado. O carro saiu calmamente pela rua.
Ao virar-se, Freitas Costa, acariciando o relógio de bolso folheado a ouro, viu o rapaz. O patrão caminhou na direção do empregado e, com uma ameaçadora bondade, comentou: “- Fechastes o estabelecimento antes da hora? Tudo pra encontrar aquela gostosura, né? Por que não avisaste, rapaz? Tinha te liberado! No duro! O que foi isto na mão?”.
O jovem parecia não ouvir nada. Petrificado, mirou o veículo do chefe. Nele, Maria Rita, responsável pelo caixa da loja, ocupava um tanto desconfiada o banco do acompanhante. Cortejada por diversos clientes, Rita possuía cabelos ruivos, pintados periodicamente. O moço então ligou as peças e descobriu o real motivo da saída do patrão. Dava tempo de uma aventura, e depois era só chegar em casa culpando a tal recaída do Aparício pelo atraso para o jantar. Contudo, percebendo o fato, Freitas Costa adicionou algumas coisas ao seu discurso enquanto limpava pacientemente o belo anel que trazia na mão direita: “- Vamos fazer o seguinte: esqueça o que viu aqui e eu esqueço o prejuízo que tu estás a me dar. Tu és arrimo de família, não? Veja o que faz, meu caro... Agora, vá dar um jeito nesta mão! Não quero funcionário meu a passar mal. Vá até a Santa Helena e digas ao Giba que é por conta da loja. Vá! Vá!”, determinou, acenando para o moço como quem o faz a um bicho. Feito isto, Freitas Costa encerrou sua fala e tomou o caminho do carro. Rita arrumava o cabelo.
O moço passou o resto do fim de tarde sentado num banco da praça. No lado oposto, o chefe namorava afoito como um garoto, Rita “Caixa” de Cássia. Veio a noite. O patrão já havia ido embora. A mão sangrava um pouco. Ergueu-se e rumou para a farmácia do Giba. Faria um curativo e iria para casa dormir. Sentia-se como o último cidadão na fila do mundo.

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