Rosely de Arcoverde
Rosely de Arcoverde
Dilton Maynard
Conheci Rosely de Arcoverde quando viajava entre Pernambuco e Alagoas. Na verdade, foi ela quem me conheceu. Acho mais justo dizer assim. Era meio dia e Garanhuns tinha o vento frio costumeiro, mas o ônibus estava quente. Ela sentou numa poltrona após a minha. Ajeitou as coisas – uma bolsa, um agasalho e o celular. Logo depois começou a falar. E como Rosely falava.
Parecia impaciente. Não conhecia Palmeira dos Índios, nem a pessoa que a receberia na rodoviária. Estava com medo de cair no sono e perder a parada. Tentei acalmar a moça, explicando que o motorista cuidava de não deixar isto acontecer, porque era prejuízo para a empresa. Tentei, em vão, retomar a minha leitura. A garota reclamou do frio, depois do calor, da poltrona; reclamou de um pedinte que não havia saído de perto dela enquanto esperava o ônibus.
O motivo da viagem é curioso. A moça iria encontrar um primo recém-aparecido. Fruto de um amor interrompido por conta da migração de um tio dela para São Paulo, o tal primo de Rosely já estava com 30 anos. Contudo, ninguém, inclusive o pai do rapaz, conhecia o moço. A missão de Rosely era fazer contato e preparar as coisas para a visita do tio, que hoje mora numa chácara, no interior de São Paulo, ao filho que ele há muito sonhava conhecer. Mas até explicar tudo isto, a moça falou dela.
Rosely era a mais nova de sete filhos. Perdera o pai assassinado quando tinha só dois anos. Depois de alguns matrimônios e falecimentos, era a única filha ainda a viver com a mãe em uma pequena cidade, próxima a Garanhuns. Os seus irmãos há muito moravam em São Paulo. Mas Rosely não caiu no mundo também. Não sumiu na estrada. Não achava justo. Antes de tudo, queria dar um pouco de conforto à mãe.
Rosely não bebe e não fuma e já teve alguns namorados. Desconfia dos homens que bebem demais. Tem medo de um casamento ruim. Quase se tornou esposa de um caminhoneiro, que gastava parte do fim de semana bebendo com os amigos. O rapaz gostava muito dela. Chegou a propor casamento a Rosely. A mãe concedeu e o namoro caminhou bem por sete ou oito meses. Contudo, depois disso o rapaz sumiu. Reapareceu numa ligação telefônica feita de um orelhão em Belém do Pará. Ele explicou que havia se desentendido com o patrão e que pedira demissão. Estava em Belém para esfriar a cabeça com uns amigos. Pediu que Rosely o esperasse. Ela esperou. Ao reencontrá-lo disse que não queria mais nada, só respeitou o moço, não o amava mais.
Rosely me pergunta se eu vou muito à praia. Digo que não tenho tempo. Ela diz que prefere piscina, pois não gosta do sal da praia. “Tem um gosto ruim”, diz ela. “Mas Rosely, a gente não vai à praia pra beber água”, argumento um tanto desanimado. Nutro a esperança de vencer mais umas páginas do livro que vinha me acompanhando desde o Recife. Nada feito. Rosely fala à vontade. É uma boa moça. Narra as coisas num ritmo alucinante. Em menos de 15 minutos de viagem, já é possível conhecer metade da sua vida.
Ela trabalhou durante dois anos como telefonista, mas com a privatização, os telefones ficaram baratos e Rosely perdeu o emprego. O prefeito teve dó da moça e arranjou um cargo para ela no posto de saúde do município. Mesmo sem ter curso algum, a minha companheira de viagem se tornou auxiliar de enfermagem. Distribuía remédios, quando havia. Vez ou outra fazia curativos num infeliz que havia se cortado na lavoura, na oficina ou mexendo aonde não devia. Mas nunca aprendeu a aplicar injeções. As coisas foram boas por um tempo. Mas um dia o prefeito mandou chamar Rosely, anunciando problemas. Explicou da fiscalização, da necessidade de se ter um diploma. Sem isto, não dava para ficar no emprego. Por isto, Rosely hoje vende roupas e perfumes pelo interior de Pernambuco.
Rosely de Arcoverde falava muito. Quando chegamos ao destino dela, nos despedimos ambos sorridentes. Afinal de contas, nada como uma boa prosa para se passar o tempo na estrada. Ela então, como num estalo, disparou a pergunta: “Qual é mesmo o seu nome?”. Havia falado tanto que se esquecera de me deixar fazer o mesmo. E olha que ela até me julgou chato no início. Brinquei e disse que não importava. Completei a resposta dizendo que diria a ela numa outra viagem. Evidentemente, isto nunca aconteceu.
Dilton Maynard
Conheci Rosely de Arcoverde quando viajava entre Pernambuco e Alagoas. Na verdade, foi ela quem me conheceu. Acho mais justo dizer assim. Era meio dia e Garanhuns tinha o vento frio costumeiro, mas o ônibus estava quente. Ela sentou numa poltrona após a minha. Ajeitou as coisas – uma bolsa, um agasalho e o celular. Logo depois começou a falar. E como Rosely falava.
Parecia impaciente. Não conhecia Palmeira dos Índios, nem a pessoa que a receberia na rodoviária. Estava com medo de cair no sono e perder a parada. Tentei acalmar a moça, explicando que o motorista cuidava de não deixar isto acontecer, porque era prejuízo para a empresa. Tentei, em vão, retomar a minha leitura. A garota reclamou do frio, depois do calor, da poltrona; reclamou de um pedinte que não havia saído de perto dela enquanto esperava o ônibus.
O motivo da viagem é curioso. A moça iria encontrar um primo recém-aparecido. Fruto de um amor interrompido por conta da migração de um tio dela para São Paulo, o tal primo de Rosely já estava com 30 anos. Contudo, ninguém, inclusive o pai do rapaz, conhecia o moço. A missão de Rosely era fazer contato e preparar as coisas para a visita do tio, que hoje mora numa chácara, no interior de São Paulo, ao filho que ele há muito sonhava conhecer. Mas até explicar tudo isto, a moça falou dela.
Rosely era a mais nova de sete filhos. Perdera o pai assassinado quando tinha só dois anos. Depois de alguns matrimônios e falecimentos, era a única filha ainda a viver com a mãe em uma pequena cidade, próxima a Garanhuns. Os seus irmãos há muito moravam em São Paulo. Mas Rosely não caiu no mundo também. Não sumiu na estrada. Não achava justo. Antes de tudo, queria dar um pouco de conforto à mãe.
Rosely não bebe e não fuma e já teve alguns namorados. Desconfia dos homens que bebem demais. Tem medo de um casamento ruim. Quase se tornou esposa de um caminhoneiro, que gastava parte do fim de semana bebendo com os amigos. O rapaz gostava muito dela. Chegou a propor casamento a Rosely. A mãe concedeu e o namoro caminhou bem por sete ou oito meses. Contudo, depois disso o rapaz sumiu. Reapareceu numa ligação telefônica feita de um orelhão em Belém do Pará. Ele explicou que havia se desentendido com o patrão e que pedira demissão. Estava em Belém para esfriar a cabeça com uns amigos. Pediu que Rosely o esperasse. Ela esperou. Ao reencontrá-lo disse que não queria mais nada, só respeitou o moço, não o amava mais.
Rosely me pergunta se eu vou muito à praia. Digo que não tenho tempo. Ela diz que prefere piscina, pois não gosta do sal da praia. “Tem um gosto ruim”, diz ela. “Mas Rosely, a gente não vai à praia pra beber água”, argumento um tanto desanimado. Nutro a esperança de vencer mais umas páginas do livro que vinha me acompanhando desde o Recife. Nada feito. Rosely fala à vontade. É uma boa moça. Narra as coisas num ritmo alucinante. Em menos de 15 minutos de viagem, já é possível conhecer metade da sua vida.
Ela trabalhou durante dois anos como telefonista, mas com a privatização, os telefones ficaram baratos e Rosely perdeu o emprego. O prefeito teve dó da moça e arranjou um cargo para ela no posto de saúde do município. Mesmo sem ter curso algum, a minha companheira de viagem se tornou auxiliar de enfermagem. Distribuía remédios, quando havia. Vez ou outra fazia curativos num infeliz que havia se cortado na lavoura, na oficina ou mexendo aonde não devia. Mas nunca aprendeu a aplicar injeções. As coisas foram boas por um tempo. Mas um dia o prefeito mandou chamar Rosely, anunciando problemas. Explicou da fiscalização, da necessidade de se ter um diploma. Sem isto, não dava para ficar no emprego. Por isto, Rosely hoje vende roupas e perfumes pelo interior de Pernambuco.
Rosely de Arcoverde falava muito. Quando chegamos ao destino dela, nos despedimos ambos sorridentes. Afinal de contas, nada como uma boa prosa para se passar o tempo na estrada. Ela então, como num estalo, disparou a pergunta: “Qual é mesmo o seu nome?”. Havia falado tanto que se esquecera de me deixar fazer o mesmo. E olha que ela até me julgou chato no início. Brinquei e disse que não importava. Completei a resposta dizendo que diria a ela numa outra viagem. Evidentemente, isto nunca aconteceu.
Comentários
Além de bem escrita, a história é envolvente. Revela a necessidade que as pessoas têm de receberem atenção e serem ouvidas, mesmo que isso lhe custe abrir o livro de sua vida para um estranho. Com diria um professor que tive na UFPE (Paulo Rezende)é o século da solidão.