Hacktivismo no Futuro do Pretérito


Daniel Santiago Chaves

Com o progressivo transcorrer do aparentemente inesgotável século XX e a chegada da Era da Informação, prenunciou-se o fim do capitalismo industrialista e da sociedade centralmente estabelecida em produção manufatureira em larga escala serial. Decorrente transformação e posfácio da era das luzes, de tudo se esperou e restava cada vez mais a convicção do futuro no conhecimento: de Peter Drucker a Daniel Bell, a sociologia das organizações começou a progressivamente atentar para a vanguarda do que hoje nós conhecemos como o amplo conceito de cibercultura.

Essa cultura cibernética, que assumia formatações distantes que variavam desde organogramas das então inovadoras empresas ‘multinacionais’ até o universo cyberpunk de William Gibson – passando por ingênuas noções universalistas de Aldeia Global, como diria Marshall McLuhan – estava profundamente firmada na tradição moderna e republicana de liberdade, fraternidade e igualdade, pensara Pierre Lévy. Assim sendo, essa admirável nova forma de apreensão do homem diante do seu novo espaço – o ciberespaço – formava e deformava comportamentos, práticas sociais, afetivas e culturais, disciplinando e rompendo mecânicas coreográficas de biopoder para um século XXI que não era nem bom, nem ruim, nem neutro.

A cibercultura, em princípio, precisa ser dissociada da conceituação ingênua e pouco profunda sobre o uso massivo de computadores, definição esta por sua vez decorrente do explosivo informacionalismo da nossa sociedade contemporânea e que gera uma leitura superficial indutiva sobre o tão aguardado pantribalismo da Internet. Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram inventivas leituras sobre a customização corpórea através de próteses – a figura mítica do Cyborg definida por Klein e Clynes em 1960 - que representam uma amostra do que os impulsos pós-futuristas do capitalismo contemporâneo poderiam representar em novos horizontes da produção, performance e disciplina dos corpos. Do niilismo de Laranja Mecânica ao clima noir da ‘Sprawl trilogy’ de Gibson, passando pela distopia de Philip K. Dick, o relacionamento dos homens com as máquinas – e as suas drogas e ‘benesses’ derivadas - foram interpretados consecutivamente como formas de relacionamento vertical, opressivo e desestruturante do caráter humano e pulsante do ser. O paradigma tipicamente pertencente ao século XX e ao pessimismo “low life, high tech” vigia às vésperas da tão esperada e nunca ocorrida III Guerra Mundial. Sem Bomba Atômica, o medo do futuro residia na própria perpetuação da espécie humana.

A ruptura com esse amplo conjunto de expectativas distópicas se deu exatamente no fim do período gelatinoso que vai do fim da Guerra Fria (1945-1989/1991) e a Crise Financeira de 2008, quando finalmente seria sepultado o século XX juntamente ao seu império sobrevivente, os EUA. Quando se funde o ataque às Torres Gêmeas ao capitalismo especulativo industrialista americano, com o frigir das guerras no Oriente Médio e um conseqüente golpe às bases morais de sustentação do American Way of Life, entrou cena uma seqüência de duros abalos que desestabilizaram qualquer olhar que ainda considerasse a então tida hiperpotência global. A ascensão de novas projeções sociais e políticas positivadas, por sua vez vastamente embebidas pela herança dos primeiros movimentos ecologistas do último quartel de século XX, contrariaram todas as expectativas mais pessimistas do início do Século XXI. A disseminação do microcomputador doméstico como ferramenta educacional e reguladora do tempo e produção humana provia aos netos do ‘do-it yourself’ punk - impulsionados pelo caminho e contribuição da emancipada geração yuppie - uma amálgama de oportunidades para contribuir individual e coletivamente para uma ação coletiva que transcendia a acepção cultural, agora na direção de uma expressão inovadora de ato político.

O hacktivismo: política na rede

A já ‘envelhecida’ Geração X, educada sob a tutela da democracia liberal + economia de mercado (o tão comentado arranjo “neoliberal” do ocidente contemporâneo) e influenciada por filmes como Clube da Luta e Matrix, era resguardada e preparada para a produtividade em um período sem esperanças que se aproximara no tempo presente. Após longo isolamento nas suas relações ascépticas com a nova modalidade de educação televisiva – o microcomputador –, estes jovens encontrarariam seu eldorado nas redes sociais digitais para superar os seus duros impasses sobre as questões de gênero, a afirmação do ser e a sociabilidade. Disciplinados em uma ambiência asséptica de não-dotação do convívio multissensorial intrínseco às relações sociais entre congêneres, essa Geração X desaprendera o sentido revolucionário da violência física, ao mesmo tempo em que era dotada de novas ferramentas de organização, agora descentralizadas e amplamente baseadas em fluxos imateriais de informação.

É nesse contexto que surge o chamado hacktivismo que ao mesmo tempo mantém a questão revolucionária da iluminista e sombria cibercultura, ainda que se baseando nestes princípios de desobediência civil não-violenta. Esse ativista geralmente é motivado, por um lado, pela já citada necessidade de afirmação gerada por essa neoliberal atomização dos indivíduos – e daí a questão da reputação dos pseudônimos, mesmo nos grupos encobertos pelo anonimato, se torna tão importante. Por outro, é movido por uma profunda insatisfação política derivada de situação social enclausurante, gerando uma orientação de comportamento fora-da-lei, mas jamais concebendo a destruição total do seu sistema, sendo pacífico com relação aos bens materiais e geralmente capacitado para agir sozinho, mantendo-se assim sistemicamente pertencente ao campo de orientação do indivíduo encapsulado, ainda que suas ações geralmente sejam massivas, em bando espontaneamente formado. Em um raso paradoxo, as máquinas autocráticas de governar são desmontadas pelas máquinas domésticas de reprodução assistida do modo de produção capitalista-informacional. A mudança desejada por estes ativistas contemporâneos, portanto, está diretamente relacionada à incapacidade sistêmica dos estados nacionais e pelas corporações capitalistas em estabelecer relações menos voltadas para a exploração e o controle social, desejando acima de tudo um relacionamento mais transparente e menos opressivo. O impulso do hacktivismo político contemporâneo, quando considerado em passo a frente das disputas por reputação, estão diretamente voltadas para um governo colaborativo ‘open source’, em uma metademocracia ultraliberalizada e esgarçada nas suas mais variadas instâncias de participação, com a conseqüente implosão da noção moderna de representação. Assim, a participação política eletrônica (e-participação) seria um hipotético, não-coreografado ‘sit-in’ massivo e virtual, em analogia aos atos de desobediência do movimento dos direitos civis de 1960, nos EUA.
Tudo isso, desde já, afasta qualquer possibilidade de conciliação entre o ciberterrorista e o hacktivista.

A ciberpolítica como ela é – ou pode ser

O que se constituiu e impulsionou essa forma de ação hacktivista foi modelada pelo aumento da capacidade de processamento de informações na própria rede em progressão geométrica. Esta capacidade, por sua vez, gera as condições para que os nós da rede não sejam mais os servidores ou microcomputadores, mas os próprios hotpoints de encontro entre os ativistas - a tecnologia alternativa ‘wiki’. Nesse sentido, se vê comprometida a capacidade de mapeamento, controle e punição dos Estados junto aos grupos dos anárquicos hacktivistas ou ‘cypherpunks’ (cyberpunks dotados de capacitação para manipular códigos-fonte de websites e sistemas de informação) ao passo em que não só as suas formas de organização são fluidas, mas os seus próprios lócus de atividade são orientados por um princípio de replicação fractal. Dessa maneira, os hacktivistas agem constantemente redesenhando os seus modos e espaços de atividade, compartilhando e manipulando coletivamente os seus códigos-fonte através de sites-máscaras e utilitários-soldados coordenados (os bots) que simulam comportamentos e ações humanas dentro de uma matriz combinatória pré-designada . Ou seja, em pontos de encontro tão variáveis quanto um IP e com um verdadeiro exército de robôs virtuais de comportamento coordenado, os hacktivistas utilizam-se de uma típica atuação em rede (conforme o Estado-Rede descrito por Manuel Castells) para desestabilizar o sistema, sem que com isso desejem a sua destruição.

A ciberpolítica se afirma nesse espaço virtual como uma amálgama de pós-jornalismo científico blogado, que levanta fundos e recruta militantes de modo voluntário para a organização reticular. Censura e repressão, inevitavelmente, recaem sobre o Estado como mecanismos pré-fabricados de controle sobre uma forma de ação política que aciona novas modalidades de articulações retórico-discursivas. A busca pela prestação de contas dos órgãos administrativos ou representativos junto aos seus representados decorre, no início da segunda década do século XXI, de um lado, por um profundo embate de uma ética pós-liberal dos cibercidadãos contra o hermetismo das questões gerais do Estado-Nação mundializado. A implosão das noções modernas de representação e participação políticas, ainda que esbarrem na velha discussão da inclusão digital, é hoje um problema real para as formas de organização e associação cidadãs oriundas dos séculos passados. Em sociedades liberais desenvolvidas do Atlântico Norte, onde a população participa dos pleitos e referendos presenciais do Estado de modo facultativo, a ruptura é ainda maior e tem conseqüências ainda incertas para uma futura e-democracia.

O sonho messiânico dessa catalizada Geração X ainda não havia ocorrido até dezembro de 2010, quando foi preso Julian Assange e a sua organização, a WikiLeaks, se tornou mundialmente conhecida. A partir daí, todos passaram a olhar para o passado do hacktivismo para pensar um novo mundo. E é nesse olhar que nós nos debruçaremos agora, da Colômbia ao Sri Lanka. E é nesse futuro do passado que está preso Julian Assange, é lá que nasceu o WikiLeaks e é lá que pode morrer um novo mundo perdido onde a informação não seria mercadoria.

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