A mulher do delegado
Dilton Maynard
Aracaju, 1943. Numa noite de sábado, um grupo de artistas saiu de um bar situado nas proximidades da Praça Camerino, centro da cidade. A noite estava desenhada com um imenso luar e a brisa marítima que corria pela região era convidativa a um prolongamento da bebedeira. O bando então rumou na direção do "Beco dos Cocos", zona do meretrício, a fim de que cada um deles pudesse encerrar a noite num quarto apertado de bordel. Porém, uma decisão inusitada foi tomada: o grupo iria até o Palácio do Governo e, no meio da madrugada, prestaria uma homenagem ao interventor do estado.
Em plena época de Guerra, medidas de emergência foram incorporadas ao cotidiano da população aracajuana. A proibição de circular pela cidade após as 22 horas foi uma destas determinações.
Todavia, aos funcionários necessários à atividades essenciais, este horário era estendido. Algo que incluía policiais, fiscais, delegados, médicos, bem como técnicos e artistas da única rádio local no período, a PRJ-6, Rádio Difusora Aperipê de Sergipe. Os tais bêbados pertenciam a este último grupo.
Já passava das 23 horas. A turma continuava reunida e, pior, completamente embriagada. Os guardas de plantão que porventura eram encontrados, findavam convencidos permitir aos boêmios continuarem o passeio, fosse pela apresentação das credenciais de funcionários da rádio, fosse pelo "suborno" através de uma boa conversa e alguns goles de cachaça. E, graças a tais estratégias, depois de alguns tropeços e muita cantoria, o grupo enfim aproximou-se do palácio. Foi aí que surgiu o delegado.
O carro passou a pouca velocidade, o suficiente para que um dos componentes avistasse, sentada ao lado do chefe de polícia, a sua esposa. Sem a menor cerimônia, o seresteiro disparou: "queima, mulher dama!”.
A confusão estava instaurada. O barulho dos pneus queimando com o atrito dos freios, o delegado descendo do carro irritado são difíceis de descrever. O certo mesmo é que o homem deu voz de prisão para todo mundo. O motivo, claro, foi desacato à (mulher de) autoridade.
Diante deste fato, o delegado ouviu uma ameaça sutil. Era madrugada do domingo. Ora, era justamente no domingo que a rádio apresentava seus mais importantes nomes, as melhores canções, às vezes, com a presença do próprio interventor no auditório da emissora. Durante o domingo inteiro a PRJ-6 promovia programas. Mas, se os artistas e técnicos fossem presos, como haveria programa? O que o interventor acharia da rádio não funcionar por causa da mulher do delegado? O chefe de polícia não quis arriscar. Liberou os boêmios que seguiram, em sua elegância trôpega, à zona do meretrício.
A história citada acima pode ser atrapalhada e, de certa forma, tragicômica. Mas aconteceu. Nela, por baixo das ousadias dos membros da PRJ-6 em desafiar os horários e determinações governamentais, extrapolando horários, violando normas, subornando e alcoolizando praças, está a noção de que, enquanto pertencentes ao rádio, estes cumpriam um papel importante.
Ao enfrentar a ira do delegado, os artistas e técnicos da pequena emissora usam como moeda de negociação os seus respectivos talentos, chamando a atenção do policial para as implicações de "no domingo não ter rádio". Tal confronto e, sem dúvida, o seu resultado "conciliador" sinalizam para o poder que os microfones radiofônicos passam a ter na sociedade moderna.
Dono de uma imediatez ainda inalcançável (não depende de tempo para conexão como a Internet ou de imagens, como a televisão), o rádio aprimorou o seu poder de elaborar versões da realidade. Para tanto, foi preciso a ajuda de profissionais como os descritos na bebedeira.
A aventura acima descrita serve para revelar os desdobramentos de um processo iniciado ainda no final dos anos 30 e que mostra vitalidade até hoje. Imbuídos de um poder adquirido a partir do momento em que fazem parte do universo radiofônico, aqueles envolvidos com a PRJ-6 exemplificam quanto o rádio, já nos anos 40, era uma arma política importante no Brasil e em Sergipe. Fazer deste veículo da comunicação uma ferramenta política é uma prática ainda muito comum e eficaz.
Cientes disto, grupos políticos se digladiam junto ao governo, barganhando a concessão de uma rádio. Por outro lado, a luta de radialistas e de organizações não-governamentais para diminuir o poder de intervenção do Estado no rádio explicita o papel fundamental deste veículo. Num país de proporções continentais, o rádio é um componente tático relevante, sobretudo para chegar às localidades mais isoladas e aos profissionais que, por qualquer motivo, não têm acesso à TV ou a outros meios de comunicação. A campanha promovida há algum tempo para por um fim à obrigatoriedade de exibição do programa A Voz do Brasil expressa de forma significativa a luta que ainda envolve a utilização do espaço radiofônico e os seus possíveis desdobramentos. O rádio continua sendo requisitado como veículo aglutinador das massas, esclarecedor da população.
Aracaju, 1943. Numa noite de sábado, um grupo de artistas saiu de um bar situado nas proximidades da Praça Camerino, centro da cidade. A noite estava desenhada com um imenso luar e a brisa marítima que corria pela região era convidativa a um prolongamento da bebedeira. O bando então rumou na direção do "Beco dos Cocos", zona do meretrício, a fim de que cada um deles pudesse encerrar a noite num quarto apertado de bordel. Porém, uma decisão inusitada foi tomada: o grupo iria até o Palácio do Governo e, no meio da madrugada, prestaria uma homenagem ao interventor do estado.
Em plena época de Guerra, medidas de emergência foram incorporadas ao cotidiano da população aracajuana. A proibição de circular pela cidade após as 22 horas foi uma destas determinações.
Todavia, aos funcionários necessários à atividades essenciais, este horário era estendido. Algo que incluía policiais, fiscais, delegados, médicos, bem como técnicos e artistas da única rádio local no período, a PRJ-6, Rádio Difusora Aperipê de Sergipe. Os tais bêbados pertenciam a este último grupo.
Já passava das 23 horas. A turma continuava reunida e, pior, completamente embriagada. Os guardas de plantão que porventura eram encontrados, findavam convencidos permitir aos boêmios continuarem o passeio, fosse pela apresentação das credenciais de funcionários da rádio, fosse pelo "suborno" através de uma boa conversa e alguns goles de cachaça. E, graças a tais estratégias, depois de alguns tropeços e muita cantoria, o grupo enfim aproximou-se do palácio. Foi aí que surgiu o delegado.
O carro passou a pouca velocidade, o suficiente para que um dos componentes avistasse, sentada ao lado do chefe de polícia, a sua esposa. Sem a menor cerimônia, o seresteiro disparou: "queima, mulher dama!”.
A confusão estava instaurada. O barulho dos pneus queimando com o atrito dos freios, o delegado descendo do carro irritado são difíceis de descrever. O certo mesmo é que o homem deu voz de prisão para todo mundo. O motivo, claro, foi desacato à (mulher de) autoridade.
Diante deste fato, o delegado ouviu uma ameaça sutil. Era madrugada do domingo. Ora, era justamente no domingo que a rádio apresentava seus mais importantes nomes, as melhores canções, às vezes, com a presença do próprio interventor no auditório da emissora. Durante o domingo inteiro a PRJ-6 promovia programas. Mas, se os artistas e técnicos fossem presos, como haveria programa? O que o interventor acharia da rádio não funcionar por causa da mulher do delegado? O chefe de polícia não quis arriscar. Liberou os boêmios que seguiram, em sua elegância trôpega, à zona do meretrício.
A história citada acima pode ser atrapalhada e, de certa forma, tragicômica. Mas aconteceu. Nela, por baixo das ousadias dos membros da PRJ-6 em desafiar os horários e determinações governamentais, extrapolando horários, violando normas, subornando e alcoolizando praças, está a noção de que, enquanto pertencentes ao rádio, estes cumpriam um papel importante.
Ao enfrentar a ira do delegado, os artistas e técnicos da pequena emissora usam como moeda de negociação os seus respectivos talentos, chamando a atenção do policial para as implicações de "no domingo não ter rádio". Tal confronto e, sem dúvida, o seu resultado "conciliador" sinalizam para o poder que os microfones radiofônicos passam a ter na sociedade moderna.
Dono de uma imediatez ainda inalcançável (não depende de tempo para conexão como a Internet ou de imagens, como a televisão), o rádio aprimorou o seu poder de elaborar versões da realidade. Para tanto, foi preciso a ajuda de profissionais como os descritos na bebedeira.
A aventura acima descrita serve para revelar os desdobramentos de um processo iniciado ainda no final dos anos 30 e que mostra vitalidade até hoje. Imbuídos de um poder adquirido a partir do momento em que fazem parte do universo radiofônico, aqueles envolvidos com a PRJ-6 exemplificam quanto o rádio, já nos anos 40, era uma arma política importante no Brasil e em Sergipe. Fazer deste veículo da comunicação uma ferramenta política é uma prática ainda muito comum e eficaz.
Cientes disto, grupos políticos se digladiam junto ao governo, barganhando a concessão de uma rádio. Por outro lado, a luta de radialistas e de organizações não-governamentais para diminuir o poder de intervenção do Estado no rádio explicita o papel fundamental deste veículo. Num país de proporções continentais, o rádio é um componente tático relevante, sobretudo para chegar às localidades mais isoladas e aos profissionais que, por qualquer motivo, não têm acesso à TV ou a outros meios de comunicação. A campanha promovida há algum tempo para por um fim à obrigatoriedade de exibição do programa A Voz do Brasil expressa de forma significativa a luta que ainda envolve a utilização do espaço radiofônico e os seus possíveis desdobramentos. O rádio continua sendo requisitado como veículo aglutinador das massas, esclarecedor da população.
Publicado originalmente no Cinform, 28 de junho de 2004.
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